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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Uma viagem pela rota da insurgência do Paquistão ao Afeganistão

Ataque contra o comboio em Nowshera (noroeste do Paquistão) tenta minar rotas que abastecem
os militares ocidentais no Afeganistão, em represália aos ataques quase
diários dos aviões teleguiados americanos
O fato de que milhares de insurgentes talebans viajam para o Paquistão quando necessitam de se afastar temporariamente dos combates no Afeganistão é um segredo de polichinelo. O motivo é simples: os soldados paquistaneses são amigáveis e a fronteira entre os dois países praticamente não é controlada. “Spiegel Online” acompanha um combatente que retorna para o front.

No Afeganistão os carros são baratos. Rafiullah sabe muito bem disso. Ele foi criado em Jalalabad, no leste do Afeganistão, um lugar no qual pode-se obter quase todo modelo de automóvel por um preço baixo. Os carros são roubados em todo o mundo e contrabandeados para o país. Rafiullah precisa de um carro, aqui no Kohistão, no norte do Paquistão, onde ele vive há alguns meses.

Rafiullah, 25, é um insurgente, ou, conforme ele prefere se definir, um “guerreiro sagrado”. Centenas, e provavelmente milhares deles recuaram para as regiões montanhosas do norte do Paquistão para recuperarem-se das suas batalhas contra as tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). O Paquistão continua sendo relativamente seguro, os soldados da Otan estão longe do país e o único adversário dos insurgentes aqui é o exército paquistanês – e os mesmo os membros desse exército “são às vezes bem amigáveis”, diz Rafiullah. Ele considera o Kohistão um lugar particularmente seguro “porque aqui, ao contrário das regiões que ficam exatamente na fronteira afegã, não há drones (aviões de ataque não tripulados) dos Estados Unidos”.

A cada duas semanas ele viaja para o Afeganistão para visitar amigos e parentes e reunir-se com colegas combatentes, diz Rafiullah. A fronteira é cruzada com frequência. “Atualmente muita gente está viajando para o Afeganistão na esperança de que as tropas ocidentais retirem-se em breve do nosso país e um novo futuro tenha início. Eu também retornarei permanentemente ao Afeganistão quando for chamado”, afirma Rafiullah. “Agora eu tenho que ir até lá pegar um carro”. Por ora ele prefere viver no Paquistão.

Uma fronteira porosa

Atualmente existe uma grande demanda por insurgentes como Rafiullah. O governo afegão deseja reintegrá-los à sociedade e o Ocidente quer conversar com eles. No entanto, esta situação é estranha. Por um lado, a luta continua. Por outro lado, o governo e as forças armadas paquistanesas persistem em negar que a região em que Rafiullah mora seja um abrigo para os jihadistas do Afeganistão.

Acima de tudo, a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão necessita de um maior controle, afirmam autoridades graduadas dos Estados Unidos. Até mesmo nos pontos de passagem oficiais na fronteira, o controle é insuficiente, isso para não mencionar as montanhas adjacentes, onde tal controle é praticamente impossível.

Muita gente acredita que o líder da Al Qaeda, Osama Bin Laden, também esteja na região, assim como Ayman al-Zawahiri, o segundo na linha de comando da organização. No final desta semana, a estação de notícias televisivas dos Estados Unidos CNN mencionou uma fonte da Otan – cujo nome não foi revelado – que teria dito que o homem mais procurado do mundo estaria escondido no distrito de Chitral, cerca de 150 quilômetros a noroeste do Kohistão. Segundo essa fonte, Bin Laden não vive em uma caverna, mas sim em casas confortáveis. Em junho último, um californiano de 52 anos de idade foi preso em Chitral com um aparelho de visão noturna, pistolas e uma espada de um metro de comprimento. O objetivo dele era matar Bin Laden e receber a recompensa de mais de US$ 50 milhões (36 milhões de euros, R$ 85,5 milhões) oferecida a quem capturar o terrorista.

O Kohistão é tido como um outro lugar no qual o líder terrorista pode estar escondido. A região é conhecida como um lugar para o qual os extremistas se deslocam para descansar. Combatentes de outras regiões paquistanesas e do Afeganistão passam temporadas aqui. É um lugar que recebe bem os visitantes – aqueles que chegam em busca de uma cama, uma refeição ou uma xícara de chá recebem rapidamente o que desejam. Mas este é também um local muito conservador. A capital provincial, Peshawar, com as suas mulheres cobertas por burcas, parece até progressista quando comparada ao Kohistão. Aqui as mulheres raramente são vistas em público. As poucas que saem, voltam para as suas casas rapidamente, mesmo que estejam completamente cobertas.

Rafiullah ri disso: “A nossa cultura pashtun é assim”, diz ele. A sua barba preta vai até o peito e ele usa um shalwar kameez brilhante – um traje que inclui uma saia que vai até os joelhos e uma calça de algodão –, bem como um turbante negro. Ele acha impressionante o fato de o seu convidado achar estranha a ausência de mulheres nas ruas. “Mas eu entendo que uma pessoa ache isso estranho se ela vem de Islamabad ou de Nova York”, afirma Rafiullah. Ele menciona Islamabad e Nova York como se estas fossem duas cidades praticamente iguais.

“O que exatamente é o Taleban?”

O Kohistão poderia ser um paraíso de férias. A região conta com paisagens de montanhas, encostas cobertas por densas florestas e terraços nos quais os agricultores trabalham. As crianças banham-se em um pequeno rio que serpenteia pelo vale. A enchente deste ano, que ocorreu após as mais intensas chuvas de verão já registradas em várias décadas, transformou o rio em uma massa furiosa de água que saltou sobre as suas margens, destruindo casas, carros, árvores e geradores elétricos.

A região faz parte da província de Khyber Pakhtunkhwa. A partir da capital, Islamabad, o viajante demora cerca de nove horas para chegar ao Kohistão, em um trajeto de carro por estradas frequentemente esburacadas. Em certos locais, a enchente destruiu vilas inteiras. De vez em quando pode-se ver casas que ficaram na borda de encostas recém-escavadas na margem do rio, prestes a desmoronarem. E, apesar disso, as pessoas continuam morando nelas. Em altitudes bem mais elevadas, longe da água, pequenas casas podem ser vistas tendo como fundo montanhas maciças. E, a cada quilômetro, há também casas maiores e mais bonitas.

Em uma manhã recente de outubro, Rafiullah embarcou em uma velha caminhonete Toyota Hi-Lux, o tipo de veículo que o Taleban usou para conquistar o Afeganistão. Ele pretende viajar até a fronteira e a seguir entrar no Afeganistão para contrabandear um carro de Jalalabad para o Kohistão. Ele faz parte do Taleban? “O que exatamente é o Taleban?”, retruca Rafiullah. “O Taleban é formado de estudantes, pessoas buscando conhecimentos. Neste sentido, eu sou um taleban”. Ele pensa um pouco e continua: “Além disso, não existe algo chamado Taleban, nem no Afeganistão nem no Paquistão”. E, de fato, dificilmente alguém aqui se define como taleban. Mas se uma pessoa estiver procurando combatentes no norte do Paquistão, os moradores das vilas e cidades lhe dirão exatamente quem está vinculado a “eles” e onde tais indivíduos podem ser encontrados.

Danos provocados pelas enchentes

Um homem que também usa barba preta, roupas brancas e um turbante escuro dirige a caminhonete pelas estradas montanhosas poeirentas rumo à Autoestrada Karakorum. A rota mais direta através do Vale do Swat ainda está intrafegável depois que as enchentes derrubaram uma ponte. Rafiullah e o seu motorista seguem por uma rota diferente antes de atravessarem a Passagem Khyber, por Peshawar. Rafiullah não conversa enquanto o carro corre pela estrada. Ele olha pela janela, de vez em quando pressiona umas teclas no seu telefone celular e cochila. São necessárias quase dez horas de viagem até o destino final: Torkham, um ponto de passagem entre o Paquistão e o Afeganistão.

Vários caminhões aguardam em uma fila para cruzar a fronteira – todos os dias entre 200 a 300 caminhões transportando suprimentos para a Otan passam por aqui. Os suprimentos para as tropas ocidentais chegam de navio em Karachi e a seguir são transportadas por terra para o Afeganistão. Grande parte desse transporte passa por Torkham. Não faz muito tempo que o governo paquistanês interrompeu a passagem de provisões por 11 dias em resposta a um ataque feito por helicópteros norte-americanos que resultou na morte de soldados paquistaneses na fronteira.

Os extremistas também buscaram vingança e atacaram vários comboios, tendo incendiado cerca de cem veículos. O governo só permitiu que os comboios voltassem a trafegar depois que a Embaixada dos Estados Unidos em Islamabad afirmou que o que houve foi “um terrível acidente” e apresentou um pedido de desculpas oficial.

Rafiullah e o seu motorista passam pelos caminhões. Esta é uma imagem bizarra: em uma pista, as provisões da Otan aguardam para entrar no Afeganistão, enquanto que na pista ao lado está Rafiullah, um insurgente que combate os soldados aos quais os mantimentos se destinam. No portão de ferro na fronteira há a seguinte inscrição em pashtun e em inglês: “Que a liberdade prevaleça na Terra”.

O trabalho dos contrabandistas é fácil

O motorista para o veículo a algumas centenas de metros da fronteira. Rafiullah deseja cruzar a fronteira a pé. Do outro lado, um amigo está aguardando para levá-lo a Jalalabad. Rafiullah é um cidadão afegão mas, como não possui um visto de entrada para o Paquistão, ele costuma viajar sem documento algum. “Isso não é nenhum problema”, diz ele, sorrindo. Ele esfrega o dedo indicador no polegar e diz: “Você só precisa dar algo para os guardas. E também ser pashtun”.

Oficialmente, os guardas de fronteira paquistaneses ganham de 6.000 a 8.000 rupias por mês, ou de 50 a 67 euros (R$ 119 a R$ 160). Até mesmo aqui, isto não é muito dinheiro. “Eu sempre dou a eles 500 rupias, e alguns motoristas de caminhão pagam mais de 2.000 rupias”, diz Rafiullah. “Eles geralmente não pedem passaportes, pelo menos não quando você fala pashtun e tem a aparência física de um morador dessa região”.

Crianças empurram carrinhos de mão carregados de sacos e malas de um lado para outro da fronteira. Enquanto a fila de caminhões arrasta-se vagarosamente para frente, as pessoas a pé cruzam a fronteira rapidamente e, na maiorias das vezes, os guardas mal olham para elas. Ninguém deseja ver documento algum. O trabalho dos contrabandistas e dos insurgentes é fácil aqui.

Uma divisão artificial

No entanto, os indivíduos oriundos da província do Punjab são minuciosamente revistados, diz Rafiullah. “As forças armadas e o serviço secreto estão cheios de punjabis e nós, os pashtuns, não gostamos disso”. Os pashtuns não gostam de dividir a fronteira de quase 2.500 quilômetro de extensão entre o Afeganistão e o Paquistão, denominada Linha Durand em homenagem ao ministro das Relações Exteriores da Índia Britânica, Sir Henry Mortimer Durand. A maioria deles, quase 30 milhões de pessoas, mora no lado paquistanês. Mas só 15 milhões vivem no Afeganistão, onde eles representam o maior segmento da população. “A fronteira foi criada por estrangeiros, e nós simplesmente não aceitamos isso”, diz Rafiullah. E é assim também que os guardas operam aqui; considerando a fronteira uma divisão artificial – e uma oportunidade para ganharem um dinheiro extra. “Nós não precisamos escalar montanhas íngremes para viajar entre o Afeganistão e o Paquistão”, explica Rafiullah.

O jovem insurgente se despede. Tudo o que ele está levando consigo é uma sacola plástica contendo roupas limpas para os próximos três dias. A seguir ele estará de volta em Torkham, dirigindo pela fronteira o seu próprio carro, que ele levará para o Kohistão. Ele acena e cumprimenta o guarda de fronteira com um tapinha no ombro e um aperto de mão. O aperto de mão é demorado; o tempo suficiente para que a cédula de dinheiro mude de dono. Isso é o que basta para garantir que o guarda não lhe pedirá nenhum documento.

Rafiullah não olha para trás. Ele entra no Afeganistão e desaparece.

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