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domingo, 5 de dezembro de 2010

Os senhores das armas

As drogas dão sustentação financeira aos traficantes, os policiais corruptos garantem a proteção, mas são os armamentos pesados que conferem poder real aos criminosos

O fuzil de assalto Kalashnikov AK-47 é uma das armas mais mortais do mundo. Dispara 600 tiros por minuto e é capaz de fazer vítimas num raio de 300 metros. Até os estilhaços destroem o que estiver ao redor do alvo. O berço dessa máquina mortífera é a Rússia, país de origem da fabricante Izhmash.

Nas duas últimas semanas, a polícia do Rio de Janeiro apreendeu vários fuzis AK-47 no Morro do Alemão. Como eles chegaram às mãos dos traficantes do Rio se foram produzidos a 12 mil quilômetros de distância? Por que as autoridades não conseguem deter sua trajetória? As mesmas perguntas são feitas toda vez que a polícia encontra metralhadoras, carabinas, pistolas e revólveres de origens tão diversas e distantes quanto Dinamarca, Israel e Arábia Saudita. Na quarta-feira 1º, juntou-se a esse arsenal uma bazuca capaz de perfurar tanques blindados – e a imagem do armamento, no alto desta página, espanta por revelar o poder de fogo dos bandidos.

O contrabando internacional de armas é a terceira maior atividade criminosa do mundo, atrás do tráfico de drogas e de seres humanos. É um negócio rentável, que movimenta mais de US$ 50 bilhões por ano – ou quase o mesmo que todo o faturamento de um gigante como o Itaú-Unibanco, um dos maiores bancos das Américas. As armas atravessam mares, oceanos e florestas de vários países até chegar às fronteiras brasileiras, especialmente nos limites de Paraguai, Bolívia, Colômbia e Argentina (leia quadro). Depois de ingressar em território brasileiro, percorrem até três mil quilômetros de estradas para chegar ao Rio, escondidas normalmente entre as cargas de caminhões que transportam suprimentos. Entre a origem e seu ponto de destino, as armas atravessam também uma rede de corrupção e de negligência de agentes públicos. “A falta de fiscalização incrementa o mercado da corrupção. Uma coisa leva a outra”, diz Paulo Storani, cientista social e ex-capitão do Bope.

Como interromper esse ciclo pernicioso? O senador Francisco Dornelles (PP-RJ) defende a criação de uma guarda nacional, subordinada ao Ministério da Defesa, que tenha a missão exclusiva de patrulhar as fronteiras. “Desde os tempos em que fui secretário da Receita Federal as fronteiras são pouco policiadas”, afirma Dornelles. Para o cientista social Luiz Eduardo Soares, os carregamentos têm que ser interceptados antes de entrarem no Rio, já que boa parte da polícia fluminense é corrompida pelos traficantes. “Os pagamentos de propina são realizados à luz do dia, diante de todos”, afirma Soares. No chamado mercado interno, as principais fontes fornecedoras de armamentos são as Forças Armadas e a própria polícia carioca, seja por meio de roubos realizados em quartéis militares, seja pela corrupção de integrantes dessas instituições.

Estima-se que 60% do arsenal contrabandeado para o Brasil desembarque no Rio de Janeiro. Mais grave ainda: o grosso das armas nas mãos dos traficantes é equipamento pesado. Na sua maioria, são metralhadoras capazes até de derrubar aeronaves. “Me chamou a atenção a quantidade de granadas de bocal, que, além de lançar estilhaços que perfuram a blindagem de um tanque, geram uma onda de calor de três mil graus Celsius que pode matar todos que estiverem por perto”, diz o delegado Marcus de Castro, chefe da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil do Rio. Em apenas dois dias vasculhando o Morro do Alemão, a polícia achou 135 armas de grosso calibre. Esse arsenal foi deixado para trás pelos traficantes em fuga. Muitas armas estavam enterradas, jogadas em caçambas de lixo ou escondidas em casas abandonadas pelos bandidos.

Há pelo menos três décadas os cariocas convivem com a política de “enxugar gelo”: a polícia desce o morro levando drogas e armas apreendidas, além de bandidos presos. Pouco tempo depois, o arsenal é reposto pelas quadrilhas. Por que as armas são tão onipresentes no Rio? É a droga que dá sustentação financeira aos traficantes, mas são os fuzis que conferem poder. Ao contrário do que acontece em outras cidades brasileiras, no Rio existe uma forte disputa por território entre os traficantes. Para ganhar mais dinheiro e ampliar sua massa de clientes, é fundamental superar uma quadrilha rival – o que só é possível com armamento pesado. “Em muitos países, a comercialização de drogas não implica violência nem armamento e dominação de territórios por traficantes”, diz Amanda Hildebrand Oi, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “Essa é uma característica do Brasil.” Em especial, do Rio. Alguém, obviamente, está faturando alto com esse “modelo” de negócios. “Talvez o dinheiro do tráfico de armas não esteja em um barraco, e sim na bolsa de valores, na especulação imobiliária ou em outros mecanismos financeiros legais e mais sofisticados”, diz o deputado Marcelo Freixo (Psol), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia do Rio e um dos maiores especialistas brasileiros em violência urbana.

O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, salienta a importância da retomada dos territórios dominados pelos traficantes. “Retiramos o que eles consideravam um porto seguro, porque estão protegidos por armas de guerra.” De fato, as operações policiais nas favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro funcionaram. No entanto, para enfraquecer realmente as quadrilhas é necessário retirar dos bandidos o sustentáculo da corrupção. “Espero que no fim da operação tenhamos elementos para punir os maus agentes”, afirma Giuseppe Vitagliano, enquanto aponta para uma caixa de papelão lotada com cadernos que contêm registros da contabilidade do tráfico. Naquelas anotações, espera Vitagliano, deve haver muitas informações sobre pagamento de propinas a policiais, batalhões da PM e delegacias de polícia.

A paz que os cariocas tanto anseiam depende muito do expurgo nas instituições policiais. A fuga dos principais chefões do tráfico (Alexander Mendes da Silva, o Polegar, Luciano Martiniano da Silva, o Pezão, e Fabiano Atanásio da Silva, o FB), mesmo com o Complexo do Alemão cercado por dois mil homens das forças de segurança e tanques de guerra, foi provavelmente uma das consequências dessa corrupção. Moradores denunciam que eles escaparam escoltados por policiais militares. Pelo serviço, os bandidos de farda teriam recebido pagamento em dinheiro vivo e barras de ouro. A corregedoria está investigando as denúncias, assim como prometeu averiguar as informações sobre abusos praticados pelas tropas.

O número impressionante de armas em circulação no Rio explica por que, nos últimos dois anos, 429 pessoas foram atingidas por balas perdidas na cidade – 24 dessas vítimas morreram. Também explica a morte de 10 mil supostos bandidos em confrontos com a polícia nos últimos dez anos e o desaparecimento de 57 policiais desde 2008. As armas de posse dos traficantes levam o inferno especialmente aos moradores das favelas, que são obrigados a conviver com a violência cotidiana e a consequente banalização da vida. Com menos armas, mais pessoas serão salvas e o Rio de Janeiro será uma cidade muito melhor.

“A barbárie não é inevitável”

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, o deputado Marcelo Freixo (Psol) presidiu a CPI das Milícias em 2008 e hoje é um dos maiores especialistas brasileiros em violência urbana

Por que é tão difícil combater a violência no Rio de Janeiro?
O que diferencia fundamentalmente a violência no Rio de Janeiro da de outras cidades como Recife, Vitória e Salvador é a questão das armas. Não é o tráfico de drogas, que existe em todo lugar do Brasil e em vários países no mundo, nem a criminalidade ou o número de mortos. Mexer no tráfico de armas significa mexer com poderes fortes e importantes da sociedade. As favelas não produzem as armas. Quem entra com essas armas? Quem lucra com isso? Quem vende? Talvez o dinheiro do tráfico de armas não esteja em um barraco, e sim na bolsa de valores, na especulação imobiliária e em outros mecanismos financeiros legais e mais sofisticados.

Há solução para a violência?
Essa barbárie não é inevitável. É possível ser mudada com investimentos em políticas públicas e com a construção de garantia de direitos. Não é possível que, com mais de 200 mil moradores no Complexo do Alemão, existam só duas escolas públicas funcionando de forma precária. Isso também é uma forma de violência. Precisamos ter uma reforma profunda na polícia e na concepção de segurança pública. Também precisamos debater o conceito de cidades, dando outra perspectiva às favelas.

A polícia carioca está entre as que mais matam no mundo. Por quê?
A nossa polícia historicamente serve a uma elite política. Ela foi construída assim: barata e violenta porque serve para a manutenção da relação do Estado com os territórios desassistidos de direitos. Como a nossa elite política é corrupta, ela precisa de uma polícia assim. É o nosso instrumento de apartheid.

O sr. foi líder de uma CPI que investigou as milícias na Assembleia Legislativa do Rio. Que impacto teve esse trabalho?
Quase todos os líderes importantes foram presos com a CPI das Milícias, incluindo um deputado e um vereador. Esses grupos perderam poder político, mas não perderam poder econômico ou territorial. Suas áreas continuaram crescendo. Eles dominam os serviços de transportes, gás, fornecimento de água, energia elétrica e tevês a cabo clandestinas. São muito parecidos com as máfias. E, se não forem derrotados economicamente e enfrentados agora, continuarão crescendo.

Qual é a relação entre milícias e polícias militar e a civil?
As milícias nascem dentro dos setores da segurança pública. Quando investigamos esses grupos em 2008, não havia uma só milícia em que a sua chefia não fosse comandada por algum membro da segurança pública do Rio, como agentes penitenciários, bombeiros, policiais ou ex-policiais, civis ou militares. É um crime organizado dentro do Estado.

Qual é a sua avaliação sobre as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs?

Defendo o princípio do policiamento comunitário e a aproximação da polícia com a comunidade. Mas acho que as UPPs não são um debate só da segurança pública. É claro que há avanços inegáveis e eles têm de ser garantidos. As UPPs nos levam a um outro debate, que ainda não foi aprofundado: as escolhas dos lugares em que serão implantadas. Todas as áreas das UPPs, como a zona portuária do Rio de Janeiro, o corredor hoteleiro da zona sul e o entorno do Maracanã são localidades estratégicas para o investimento de capital privado para a cidade olímpica.

É possível assegurar que uma favela foi realmente pacificada?
A concepção de um lugar pacificado é uma utopia. Todo mundo quer a paz. Até mesmo algumas facções criminosas têm a palavra em seus dizeres. Porém, esse debate tem que ser feito à luz das políticas públicas. Muitas vezes, um tanque de guerra numa esquina traz uma sensação de segurança que não pode ser confundida com a paz. Uma sociedade pacificada se desenvolve calcada na garantia de direitos. A ideia de ter muita polícia nas ruas como modelo de segurança é estranha. Uma sociedade que precisa ter muita polícia nas ruas é tudo, menos segura.

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