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quinta-feira, 24 de abril de 2014

Crimeia sofre com rotina dividida entre leis russas e ucranianas

Após a Rússia ter anexado a Crimeia praticamente do dia para a noite, os burocratas russos responsáveis pela emissão de passaportes e autorizações de residência se instalaram no prédio onde antes trabalhavam seus antecessores ucranianos – e onde Roman Nikolayev agora aguarda diariamente para tentar solucionar uma dúvida aparentemente banal.

A filha e a neta dele tinham acabado de chegar da Ucrânia quando, de repente, elas se viram em um país diferente. Por isso, ele tem se questionado se elas poderão se tornar residentes legais da Crimeia. Mas Nikolayev não consegue entrar no prédio para tirar sua dúvida porque ele é o número 4.475 da lista de espera para receber atendimento relacionado a passaportes. A cada dia, são atendidas, no máximo, 200 pessoas da multidão agitada que se acotovela em torno do alto portão enferrujado.

"Eles criaram uma linha telefônica, mas ninguém atende lá", disse Nikolayev, 54, um asseado gerente de transportes aposentado que ostenta uma barba curta e grisalha. "Antes, nós tínhamos um país muito bem organizado – e a vida transcorria suavemente", disse ele, suspirando. "Então, no espaço de duas semanas, um país se transformou em outro". "Eto bardak", acrescentou ele, usando a palavra russa para bordel e que também significa "isto é uma bagunça".

Um mês após a anexação relâmpago da Crimeia pela Rússia, os moradores desta península do Mar Negro não estão vivendo em um país diferente, a Rússia, mas sim em um país de confusão perpétua. Declarar a mudança de governo, segundo eles estão experimentando na pele, foi muito mais fácil do que executá-la na realidade. A transição caótica tem ocorrido em meio às crescentes tensões observadas no leste da Ucrânia, região vizinha e onde os possíveis resultados incluem uma repetição da anexação da Crimeia.

Hoje na Crimeia poucas instituições estão funcionando normalmente. A maioria dos bancos estão fechados, assim como os cartórios de registro de propriedades. Os processos judiciais foram adiados por tempo indeterminado. As importações de alimentos têm ocorrido de maneira aleatória. Algumas empresas estrangeiras, como o McDonald's, fecharam as portas.

Outras mudanças têm sido mais sinistras. "Unidades de autodefesa", que não têm mandato oficial óbvio, invadem estações de trem e outros pontos de entrada da região para realizar inspeções surpresa. Os viciados em drogas, ativistas políticos, gays e até padres ucranianos – que não são bem-quistos pelo governo russo nem pela Igreja Ortodoxa Russa – estão entre os grupos que temem por suas vidas sob um governo muito menos tolerante.

Na verdade, a mudança de país trouxe confusão para praticamente todos os aspectos da vida na Crimeia. A cada dia que passa os cidadãos locais precisam de algo novo – carteiras de habilitação, placas para seus automóveis, seguros, receitas médicas, passaportes e currículos escolares. Os russos que têm inundado a região em busca de terrenos para comprar e de outras oportunidades ficaram igualmente frustrados com os obstáculos logísticos e burocráticos.

"É necessária a reconstrução total de tudo. Por isso, esses problemas estão se multiplicando", disse Vladimir P. Kazarin, 66, professor de filologia da Universidade Nacional Taurida (o nome da universidade, que deriva da história grega, deverá ser alterado em breve). "Vai levar uns dois ou três anos para que todo esse caos seja solucionado, mas nós temos que continuar vivendo".

Num nível mais profundo, alguns cidadãos da Crimeia têm enfrentado dificuldades relacionadas a questões fundamentais ligadas a sua identidade, um processo muito mais confuso do que simplesmente mudar de passaporte. "Eu não posso dizer a mim mesmo: 'oK, agora eu vou parar de amar a Ucrânia e passarei a amar a Rússia'", disse Natalia Ishchenko, outra professora da Taurida que tem raízes em ambos os países. "Eu sinto que o meu coração está dividido em duas partes. Essa situação é realmente difícil psicologicamente".

Mas o governo da Crimeia repudia quaisquer dúvidas ou até mesmo reclamações por parte dos cidadãos locais. "Bobagem", diz Yelena Yurchenko, ministra do Turismo e Resorts e filha de um almirante soviético que se aposentou na Crimeia. Esses "são pequenos problemas que podem ser resolvidos conforme forem aparecendo", disse ela, acrescentando que "essas questões podem resultar em certas tensões para as pessoas preguiçosas que não desejam progredir na vida".

Legiões de autoridades russas se dirigiram à Crimeia para ensinar aos habitantes locais como se tornarem russos. Segundo Yurchenko, se apenas o setor de turismo for levado em conta, a Crimeia precisa de aconselhamento em temas relacionados às leis, ao marketing, à assistência médica e aos meios de comunicação envolvidos na área. "Você tem ideia de quantas pessoas precisam vir trabalhar aqui apenas no setor de turismo?", disse ela em entrevista, explicando por que até mesmo seu ministério não pode ajudar ninguém a encontrar um quarto de hotel em Simferopol. "Nós também precisamos lidar com os setores de transportes, de economia, de construção, de medicina, de cultura e com muitas outras coisas".

Maxim e Irina Nefeld, um jovem casal de Moscou, há muito sonhava viver perto do mar. Eles estavam na costa sul da Crimeia à procura de terras em 18 de março, quando Putin anunciou a anexação. Eles encontraram um terreno coberto por pinheiros, com aproximadamente 1.300 metros quadrados e vista para o mar, por US$ 60 mil e concordaram em comprá-lo, mas não puderam concluir o negócio sem o aval do cartório de registro de propriedades, nem conseguiram encontrar um banco para transferir o dinheiro. No dia seguinte, o proprietário pediu US$ 70 mil. Nefeld voltou para Moscou para obter a quantia em dinheiro vivo. Mas, ao retornar para fechar a compra, em 10 de abril passado, o proprietário exigiu US$ 100 mil.

As leis russas deixaram alguns grupos em situação ruim. A Rússia proíbe a distribuição de metadona para o tratamento da dependência de heroína, por exemplo. Por isso, à medida que os estoques locais da substância diminuem, a dose diária fornecida a 200 pacientes da clínica de Simferopol foi reduzida pela metade. "É a nossa morte", disse Alexander, 40, que se recusou a fornecer seu nome completo por ser um viciado em recuperação. Sem saber que a metadona é ilegal na Rússia, ele votou pela anexação.

Ocasionalmente, os cidadãos da Crimeia ficam alarmados diante dos homens armados e vestidos em uniformes sem insígnia que se materializam em locais como a estação ferroviária de Simferopol para inspecionar bagagens e, às vezes, prender passageiros. Várias pessoas que foram detidas durante os protestos contra o referendo de um mês atrás ainda não apareceram. Quando confrontados, os homens uniformizados dizem aos cidadãos da Crimeia que eles são "ativistas do povo" que estão "preservando a ordem".

O arcebispo Kliment, da Igreja Ortodoxa Ucraniana, difamada por sua homóloga russa, disse que padres russos ladeados por apoiadores armados ameaçaram confiscar igrejas em pelo menos dois vilarejos. Os 16 sacerdotes que respondem a ele enviaram suas famílias e seus ícones mais valiosos para o continente ucraniano com a intenção de protegê-los, disse ele.

Natalia Rudenko, diretora e fundadora da uma escola ucraniana da capital, disse que os funcionários municipais a demitiram pouco tempo depois de um membro das forças de autodefesa ter realizado uma visita e exigido saber por que a escola ainda estava ensinando ucraniano e não exibia a bandeira russa. Yurchenko, a ministra do Turismo, disse que a escola poderia continuar ensinando ucraniano, uma vez que a nova constituição protegia o idioma, mas que seria necessário incluir aulas de russo no currículo.

É difícil contabilizar os muitos setores do governo da Crimeia que não estão funcionando atualmente. Processos judiciais foram congelados porque os juízes não sabem qual lei aplicar: a russa ou a ucraniana. Procedimentos essenciais, como os testes de DNA, agora devem ser feitos em Moscou, em vez de Kiev. Um guarda de trânsito confessou que não tinha ideia do que fazer para cumprir a lei – ele é obrigado a passar duas horas por dia em aulas para aprender as leis de trânsito russas.

Os advogados da região, cuja formação se tornou irrelevante, tentam desvendar os livros de direito russos e têm enfrentado dificuldades para compreender termos desconhecidos. "Eu não serei capaz de competir com jovens advogados vindos da Rússia, com diplomas em direito russo", disse Olga Cherevkova, 25, que estava cursando um pós-doutorado em legislação relacionada ao setor de assistência médica ucraniano. Ela está avaliando a possibilidade de abandonar a terra onde nasceu e onde está sua identidade. "Talvez eu devesse arrumar minhas malas e ir para Miami", riu ela para logo em seguida se conter. "Eu estou rindo, mas essa situação realmente não é uma piada. Eu quero viver em um país livre. Mesmo assim, para mim, como advogada, essa é uma situação interessante, mas também um pouco estranha".

2 comentários:

  1. Só os inocentes da Criméia não perceberam que não haverá grande mudança na vida cotidiana com a troca de um governo por outro.
    Esses eventos só serviram pra mostrar ao mundo que existe outra força pra bater de frente com os americanos.

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