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quinta-feira, 3 de abril de 2014

Sentenças de morte egípcias revelam profundo racha na sociedade

Réus da Irmandade Muçulmana 
São 10 horas da noite. Ambas as janelas no escritório do advogado Hussein Ali Tamam, localizado no primeiro andar de um prédio na praça Saa, estão abertas. Uma brisa quente está soprando os papéis em sua mesa, onde Tamam está sentado atrás de uma pilha de livros e pastas. Tamam, um homem desengonçado de 46 anos, é considerado um dos advogados de defesa mais experientes em Minya, uma cidade à margem do rio Nilo no Egito. Mas ele parece estressado enquanto alternadamente lê, escreve e fuma. Ele está, principalmente, tentando se acalmar. Ele acabou de sofrer a maior derrota de sua vida.

Tamam comanda uma equipe de advogados que representou cerca de 100 dos 529 réus no "julgamento de Minya". Na semana passada, cada um deles foi sentenciado à morte, uma pena coletiva proferida após apenas um dia e meio. É um recorde egípcio.

Entre os sentenciados, disseram vários advogados independentemente uns do outros, estavam pelo menos quatro menores que, segundo a lei egípcia, deveriam ter sido julgados separadamente. Também foi dito que três homens mortos estavam entre os sentenciados à morte.

Tamam aponta para uma pilha de papéis com pelo menos 15 centímetros de altura. "Isso representa um quarto do indiciamento. São 3.500 páginas no total, 14 mil apêndices divididos em quatro partes. E você sabe quando me foram passadas essas partes? Um quarto de hora antes do início do julgamento. Eu pergunto: O que está acontecendo neste país?"

Ele retira seus óculos escuros e esfrega os olhos. "Eu vou trabalhar durante toda esta madrugada e amanhã de manhã vou me encontrar com meus colegas", ele diz. "Nós precisamos encontrar uma nova estratégia."

Na manhã seguinte, Michael Mahir –um estudante universitário, ativista cristão e grafiteiro– destranca uma porta pesada de madeira na cidade pequena de Bani Mazar, que pertence ao distrito administrativo de Minya. Ele é um jovem baixo, um pouco rechonchudo, quieto e inteligente. Ele estuda administração no Cairo e está atualmente se concentrando em marketing e mídia social. Uma pequena cruz está tatuada em seu antebraço direito.    

Cacos de vidro    
Ele entra no pátio repleto de escombros de uma igreja incendiada e faz sua inspeção habitual da nave destruída, passando por pedras escurecidas e cacos de vidro, restos de um candelabro.

Quando a igreja foi atacada e incendiada por uma turba provavelmente liderada por membros da Irmandade Muçulmana em 14 de agosto de 2013, Mahir permaneceu relutantemente com suas irmãs, seu irmãozinho e seus pais no apartamento deles. O apartamento fica localizado a apenas um quilômetro da igreja, em linha reta. Eram 7 horas da noite e ele diz que podia ver a fumaça pela janela e sentir o cheiro. Desesperadamente, ele tentou acionar a polícia e os bombeiros. "Mas ninguém ergue um dedo por nós cristãos, eles queriam o pior. E nós? Se tivéssemos tentado proteger nossa igreja e nossa escola, eles teriam nos esfaqueado, nos enforcado, nos espancado até a morte."

Mahir concorda com as 529 sentenças de morte proferidas em Minya. "É justo que essas pessoas sejam agora executadas", ele diz.

E se houver inocentes entre eles? "Não existem inocentes neste país", ele diz. "Você tem que decidir, defender aquilo em que acredita. Ou você pertence a um lado ou ao outro."

Enquanto Mahir conclui sua inspeção das ruínas da igreja, tranca a porta e olha cuidadosamente ao redor para ver se há alguém à espreita, uma mulher chamada Maha Said, a apenas cinco minutos de carro de distância, está preparando o café da manhã para seus dois filhos, sogro e cunhado. Mas não passa um momento em que não pense em seu marido. Ele está preso na presídio Wadi Gidal, um dos 529 homens sentenciados à morte. Ela não tem notícias dele desde que foi preso em 25 de janeiro, nenhuma carta e nenhum telefonema. Wadi Gidal se encontra a cerca de 700 quilômetros de distância.

Depois do café da manhã, Maha Said lavará a louça, arrumará as camas e varrerá a casa, apesar do apartamento já estar impecavelmente limpo. "Eu tenho que me manter ocupada para não pensar demais", ela diz. "Meu marido é inocente. Naquele 14 de agosto, enquanto as coisas terríveis aconteciam, ele não saiu do apartamento. Eu poderia jurar se tivesse sido autorizada a estar lá no dia do julgamento."  

Mais penas de morte à caminho?    
Na manhã de 24 de março, às 9h30 da manhã, segundo um relatório preparado pelos advogados, o juiz Saeed Elgazar –cujo sobrenome significa "o açougueiro"– fez o meirinho anunciar seu veredicto no caso Nº 1842. Era apenas o segundo dia do julgamento, que foi realizado no grande salão no piso térreo do tribunal de Minya, um prédio quadrado de sete andares.

Apenas 147 dos 529 réus estavam presentes –os outros não foram presos a tempo para o julgamento e aparentemente estão escondidos– e estavam sentados em uma jaula de aço. Três dúzias de advogados estavam na galeria e à mesa da defesa. Hussein Ali Tamam, o advogado criminal que tinha acabado de receber a documentação do indiciamento, estava sentado na primeira fila. O juiz Elgazar não apareceu em pessoa –devido a preocupações de segurança, como foram informados os advogados de defesa.

Muitos dos recém-condenados desmaiaram ao ouvir o veredicto, disseram os advogados que estavam presentes. Alguns choraram, outros roíam suas unhas até sair sangue. O prédio estava protegido por cerca de 200 guardas fortemente armados e dois veículos blindados de transporte estavam estacionados no lado de fora.

Logo após o veredicto, Minya –uma cidade indistinta de 220 mil habitantes, a quatro horas ao sul do Cairo, uma que sempre foi um ninho de atividade da Irmandade Muçulmana– ganhou proeminência nas manchetes em todo o mundo. Foi um golpe contra a Irmandade Muçulmana, mas também contra o conceito de justiça. Um segundo julgamento coletivo em Minya, contra quase 700 islamitas adicionais, incluindo o líder da Irmandade Muçulmana, Mohammed Badie, está marcado para 28 de abril. Penas de morte adicionais são esperadas.

A linha dura seguida em Minya provavelmente vem de um homem que não tem nada a ver diretamente com o julgamento, mas que simultaneamente anunciou estar deixando o posto de comandante-em-chefe do Egito para concorrer à presidência do país. Na mesma semana em que foram proferidas as penas de morte, o marechal de campo Abdel Fattah al-Sissi, que teve um papel chave no governo interino apoiado pelos militares por exatamente oito meses, três semanas e três dias desde a derrubada do presidente Mohammed Morsi, da Irmandade Muçulmana, anunciou: "Deixarei este uniforme para defender o país".    

'Imoderada'      
A declaração de Al-Sissi veio depois, após muita indecisão. Talvez por estar esperando compromissos importantes de seus aliados –em particular, promessas de financiamento adicional pela Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Kuait. Sem os bilhões em ajuda desses países, o Egito faliria e ficaria politicamente incapacitado. Desde a queda de Morsi, os três países do Golfo injetaram mais de US$ 12 bilhões no Egito. Em troca de mais ajuda, Al-Sissi agora está perseguindo a Irmandade Muçulmana e qualquer outro que entre no caminho.

Assim, as reações à candidatura de Al-Sissi se cruzam com os comentários em relação ao veredicto drástico em Minya.

As reações do Ocidente foram unânimes. Uma porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos disse que a execução das penas de morte seria "imoderada". Os comentários da ONU e da União Europeia foram semelhantes. No Egito, em comparação, a maioria parece aprovar o veredicto. "Eu aprecio a equidade de nosso judiciário ao lidar com esses assassinos", foi como um conhecido apresentador de televisão, Ahmed Mussa, abriu seu programa. Ele então foi mais longe: "Que não sejam apenas 500, mas 10 mil ou 20 mil penas de morte!" Uma das poucas personalidades contrárias ao veredicto foi o blogueiro Abd al-Fattah, que foi solto da prisão na semana passada. Referindo-se ao seu próprio caso, ele escreveu: "Um passo para frente e 529 passos para trás".

E em Minya? Aqui, as pessoas agem como se nada tivesse acontecido, ao menos à primeira vista. Não ocorreram manifestações aqui como na última sexta-feira em Gizé e Asyut. Um casamento foi realizado no luxuoso Horus Resort na estrada costeira; ao lado, uma convenção de dentistas transcorria normalmente. Mas há polícia por toda parte.

É difícil encontrar um turista. Minya há muito está fechada a estrangeiros. Os europeus são inicialmente visados e chamados de lado pela polícia e serviço secreto, interrogados, alertados, liberados e então seguidos. Um clima quase paranoico pesa sobre a cidade, como se as pessoas estivessem à procura de um senso perdido de normalidade. Não resta nada da conversa amistosa antes típica do Egito, apesar de todo caos e tensão. Agora, há uma discórdia quase certa que parece prestes a explodir.

Nesta manhã, um carro é estacionado diante de uma igreja protestante na Talaban Street, levando os supervisores a chamarem a polícia. De repente, a dona do veículo aparece –uma dona de casa que parou ali para comprar laranjas e alface. Um bate-boca ocorre e mais homens aparecem e se envolvem. Há empurra-empurra e gritos de raiva. Tudo acaba em poucos minutos, quando a polícia consegue acalmar os ânimos, mas isso mostra que qualquer coisa pode acontecer aqui. Após o veredicto, Minya é uma cidade paralisada de medo, cheia de fúria e sem misericórdia.    

'Ele morre todo dia'      
O ativista cristão Michael Mahir, por exemplo, é bem amistoso. Mas ele não tem compaixão por Maha Said, cujo marido pode ser executado a qualquer dia. O cunhado de Maha, por sua vez, dá de ombros friamente quando perguntado sobre os ataques aos cristãos e suas igrejas. Enquanto isso, o advogado Hussein Ali Tamam acredita que ele próprio será preso em breve. "Qualquer coisa é possível depois desse julgamento inesquecível", ele diz.

O que realmente aconteceu no julgamento em Minya? O veredicto coletivo foi ordenado pelo Cairo? Ele foi a mando dos militares? Se alguém examinar as declarações dos observadores do julgamento, que disseram aproximadamente as mesmas coisas de modo independente uns dos outros, a imagem resultante não é de conspiração. Mais provavelmente foi uma reação automática de um único juiz.

Todo mundo diz que os advogados de defesa receberam o indiciamento tarde demais, o que pode ter ocorrido por negligência ou pode ter sido a intenção do juiz. Além disso, o juiz Elgazar tem a reputação de veredictos draconianos. Ele poderia muito bem estar agindo por convicção. Ou pode ter tentado chamar a atenção das pessoas no poder no Cairo.

Pessoas com conhecimento em Minya dizem que cerca de 85% dos juízes da jurisdição são corruptos. Os julgamentos só se tornam mais ou menos justos quando chegam aos tribunais de apelações, segundo eles. E esse processo só começará assim que o grão-mufti comentar sobre os veredictos.

A escalada no julgamento em Minya começou imediatamente. O juiz Elgazar foi brusco, ainda mais que o habitual nos tribunais egípcios. Em resposta, o réu Nº 50, um homem chamado Ali Hassuna, se levantou e começou a recitar trechos da Constituição egípcia em voz agitada. O juiz ordenou furiosamente que ele se calasse, o que provocou protesto dos advogados –quando o juiz ordenou à segurança que cercasse os advogados e removesse todos da sala do tribunal. Ele gritou três vezes: eu prometo que chegarei ao veredicto em um dia!

Ao menos foi assim que vários advogados narraram a cena, o que faz parecer que um único juiz perdeu a calma e deu um veredicto que provavelmente será anulado por um tribunal de apelações. Mas isso não é uma certeza.

Por ora, os condenados devem viver com essa incerteza. Assim como suas famílias. Como Maha Said, que limpa constantemente seu apartamento por simples desespero.

"Esse veredicto é inacreditável", diz o advogado Hussein Ali Tamam. "É a oitava maravilha do mundo no Egito." Ele ri amargamente antes de acrescentar: "Um preso no corredor da morte acorda pela manhã e morre. Ele morre todo dia."

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